A EUCARISTIA E A COMUNIDADE

18/05/2012 07:31

A EUCARISTIA E A COMUNIDADE


 
A Eucaristia tem uma dimensão muito mais ampla que a celebração de um banquete ou uma refeição sagrada e sacrificial. Vai muito mais longe e não se exaure, como todo sacrifício, na comunhão que se estabelece no momento da celebração. Isto pelo simples fato de se dever repetir sempre em memória de Cristo, que não se confinou na Ceia Eucarística.
 
Até mesmo nos ambientes profanos, por assim dizer, uma refeição não se limita a um simples alimentar, destinado tão somente à sobrevivência, tal como no meio animal. É muito mais que isso. Traduz-se as mais das vezes em uma espécie de solidariedade profunda, refletindo e até mesmo conduzindo a uma identidade e comunhão de vidas, afetos ou sentimentos, concorrendo para a paz social, compartilhada no alimento comum.
 
Esse aspecto da refeição profana reflete assim, em dimensão terrena, um dos efeitos "naturais" daquela refeição sagrada que é a Páscoa Israelita. Porém, tendo sido esta instituída com dimensão religiosa, "figura" da Páscoa Cristã, supera em muito aquela refeição profana. Além disso, em virtude de "cumprí-la" em uma comunhão sacrificial com Cristo, repetindo-se tal como ela em um memorial, dá-lhe então uma dimensão eterna, comparando-se as duas:  "Este será para vós um memorial, e o celebrareis como uma festa para Iahweh; nas vossas gerações a festejareis; é um decreto perpétuo" (Ex 12,14). / "Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória" (Lc 22,19). / "Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim. Pois todas as vezes que comeis desse pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor AT É QUE ELE VENHA. Eis porque todo aquele que comer do Pão ou beber do Cálice do Senhor indignamente, será réu do Corpo e do Sangue do Senhor" (1Cor 11,25-27).
 
O "fazei-o em memória de mim" e o "anunciais a morte do Senhor até que Ele venha" formam uma unidade de expressão, consubstanciada no binômio "fazei-o / anunciais". Traduz ela assim a ocorrência de profunda igualdade, anunciada pelo próprio Jesus, com a Sua Morte antes da sua Crucifixão e até mesmo antecipando-A, e ao mesmo tempo INSTITUINDO O SACERDÓCIO CRISTÃO, para torná-LA "presente" com a cerimônia "ATÉ QUE ELE VENHA". Além do sentido escatológico, tal como aconteceu na instituição da Páscoa Israelita, pelo memorial, a Ceia Eucarística "exala um perfume de suave odor para Deus" (Ex 29,18). O termo memorial ou memória, quando é a "lembrança" de Deus, sempre se traduz em uma atitude dinâmica, as mais das vezes, libertadora e vinculada à Aliança:  "..., e os filhos de Israel, gemendo sob o peso da servidão, clamaram; e... o seu clamor subiu até Deus; Deus lembrou-se de sua Ali ança..." (Ex 2,23-25). "Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito... Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios..." (Ex 3,7-8). "... Iahweh... Este é o meu nome para sempre, e esta será a minha lembrança (lit.: "memória") de geração em geração" (Ex 3,15). / "Nos vossos dias de festas, solenidades ou neomênias, tocareis as trombetas nos vossos holocaustos e sacrifícios de comunhão, e elas vos serão como MEMÓRIA diante do vosso Deus" (Nm 10,10).
 
Essa significação, que vincula a ação de Iahweh-Deus em favor de seu Povo, é conhecida e dela participam até mesmo na sua época os primeiros cristãos:  "As tuas orações e as tuas esmolas subiram em memorial diante de Deus, e ele se lembrou de ti." (At 10,4). / "Cornélio, tua oração foi ouvida e tuas esmolas foram rememoradas diante de Deus" (At 10,31).
 
Essa vinculação de Deus pela memória a um compromisso que tenha contraído, - a Aliança, por exemplo, - fica bem mais clara em vários e outros trechos da Escritura, tanto do Antigo como do Novo Testamento:  "Eis o sinal da Aliança que instituo entre mim e vós e todos os seres vivos que estão convosco, para todas as gerações futuras: porei meu arco na nuvem e ele se tornará um sinal da aliança entre mim e a terra. (...) Quando o arco estiver na nuvem, eu o verei e ME LEMBRAREI DA ALIANÇA ETERNA que há entre Deus e os seres vivos..." (Gn 9,12-17)."Socorreu Israel, seu servo, LEMBRADO de sua misericórdia, conforme prometera a nossos pais, ..." (...) "...; para fazer misericórdia com nossos pais, LEMBRADO DE SUA ALIANÇA SAGRADA, do juramento que fez ao nosso pai Abraão..." (Lc 1,54.72s)."E ouvi o gemido dos filhos de Israel, aos quais os egípcios escravizavam, E ME LEMBREI DA MINHA ALIANÇA . Portando, dirás aos filhos de Israel: Eu sou Iahweh, e vos farei sair debaixo das cargas do Egito, vos libertarei da sua servidão... Tomar-vos-ei por meu povo e serei vosso Deus" (Ex 6,5-7).
 
Pode-se então compreender que o memorial da Eucaristia tem essas conotações, a começar por aquela que reflete a libertação do Egito e, agora, a da escravidão do pecado, como um ato de extremo amor do Filho Unigênito do Pai. Antes, com o sangue "derramado" nos portais dos israelitas e, agora, com o "sangue derramado em favor de muitos", "cumprindo" (Mt 5,17) assim a Nova Aliança. Esse memorial é a repetição da Morte de Cristo na Cruz, pois "a proclama até que ele venha" (não se pode proclamar o que não acontece) e "aquele que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor", e ainda "aquele que come e bebe sem discernir o Corpo, come e bebe a própria condenação" (1Cor 11,26-28). Não se trata, portanto, de uma simples lembrança do gesto de Jesus entregando-se à morte, "e morte de Cruz" (Flp 1,8), mas da presença real do Corpo e do Sang ue de Jesus, separados antecipadamente como na Cruz, pela imolação. Também, "derramado" o sangue, tal como no cerimonial da Páscoa Judaica; agora, porém, no ritual da Páscoa Cristã, no altar da Mesa da Cerimônia Eucarística, tal como na Cruz, "em favor de muitos". Não fora assim seria impossível ser "réu do corpo e do sangue do Senhor", ou "comer e beber a própria condenação". E é somente por causa disso que, por ter assim reconhecido o Cristo, com São Paulo, se pode dizer:  "... Cristo, NOSSA PÁSCOA, foi imolado" (1Cor 5,7).
 
Por outro lado, João Evangelista, ao narrar o Lava-Pés (Jo 13), dá as linhas mestras de alguns elementos que compõem a dimensão escatológica ("até que Ele venha") do ritual Eucarístico. Principalmente, quando Pedro resiste e não quer ter os pés lavados pelo Mestre e Jesus lhe diz que "se não lhe lavar os pés não terá parte com Ele" (13,6-9). Exibe Jesus, com isso, uma dimensão apostólica, com significado bem mais amplo do que um humilde e exclusivo ato de "lavar-pés". É tal como um complemento daquela "purificação de que foram alvo" (13,9-10), que deverá também "se repetir sempre" (13,12-20), e cujo prolongamento atinge uma dimensão missionária, clara por demais, ao Jesus dizer:   "... quem recebe aquele que eu enviar, a mim recebe e quem me recebe, recebe aquele que me enviou" (13,20)
 
Além disso, João com essa sua narrativa da Eucaristia (Jo 13,2... "durante a CEIA"), manifesta um sentido bem diferente e mais amplo que o dos Sinóticos quanto à Instituição do Sacerdócio. Para isso, exibe também uma dimensão de serviço, aí imanente:   "Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais. ... o servo não é maior que o seu Senhor, nem o enviado maior do que quem o enviou" (Jo 13,15-16).
 
E, da mesma forma, vai exprimir uma dimensão comunitária da santificação advinda. Jesus "coloca água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha..." (13,5 / 2Sm 25,41). Ato de "servo", "o Servo do Senhor" profetizado por Isaías (Is 53), que deverá também ser praticado por eles, "que não são maiores que o seu Senhor nem daquele que os enviou", "lavando os pés uns dos outros", e enviando outros para a Evangelização do Mundo. Darão, assim, prosseguimento à dimensão missionária, que nasce na comunhão estabelecida com o próprio Cristo, tornando-se um só corpo com Ele, a partir da Eucaristia.
 
João, assim detalhando, oferece mais elementos às genéricas narrações dos Evangelhos de Mateus (Mt 10) e Lucas (Lc 22,19-27). Mateus apresenta no capítulo dez o que se denomina por vezes de "Discurso Missionário", entre cujas recomendações de Jesus se destacam as mesmas de João, acima transcritas, se bem que "antes" da sua narrativa da Instituição da Eucaristia (Mt 26):  "Não existe discípulo superior ao mestre, nem servo superior ao seu senhor. (...) Quem vos recebe, a mim me recebe, e quem me recebe, recebe ao que me enviou" (Mt 10,24.40).
 
Por sua vez, também, insinua uma identidade com a Páscoa dos Israelitas, pelas mesmas palavras que usa, refletindo uma situação a Ela vinculada, ao narrar e comparando-as: "Não leveis ouro, nem prata, nem cobre nos vossos cintos, nem para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado..." (Mt 10,9-10).
 
"É assim que devereis comê-lo (‘o Cordeiro Pascoal’): com os lombos cingidos, sandálias nos pés e cajado nas mãos..." (...)
 
"Os filhos de Israel fizeram como Moisés havia dito, e pediram aos egípcios objetos de prata, objetos de ouro e roupas (...) os egípcios lhes davam o que pediam;..." (Ex 12,11.35-36).
 
Dispondo-as em duas colunas e remanejando-as para melhor visão, vê-se a semelhança de palavras e a diferença de situações, tal como desejou Jesus:
 


Mt 10,9-10
Não leveis cobre nos vossos cintos, nem sandálias, nem cajado. Não leveis ouro, nem prata nem cobre nos vossos cintos, nem para o caminho, nem duas túnicas.
 
 
Ex 12,11.35-36
É assim que devereis comê-lo: os lombos cingidos sandálias nos pés cajado nas mãos. Os filhos de Israel fizeram como Moisés havia dito, e pediram aos egípcios objetos de ouro, objetos de prata e roupas.
 


 
É que, na Páscoa Israelita, o Cordeiro seria "comido às pressas" pelos israelitas, já preparados para uma longa viagem (Ex 12,11) e para a conquista da Terra Prometida (Nm 13-14) enquanto que, agora, na Páscoa Cristã, iriam em Missão de Paz, "armados" para uma conquista diferente: "... proclamai que o Reino dos Céus está próximo. Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios. De graça recebeste, de graça dai" (Mt 10,7-8).
 
Essa dimensão "missionária" e de "serviço" é diferentemente demonstrada por Lucas, quando, após a narração da Instituição da Eucaristia, na Última Ceia, traz a cena da discussão dos discípulos sobre "quem seria o maior" (Lc 22,24-30), cuja orientação dada por Jesus mostra o exemplo da Sua TOTAL DOAÇÃO:  "..., qual é o maior; o que está à mesa, ou aquele que serve? Não é aquele que está à mesa? EU, PORÉM, ESTOU NO MEIO DE VÓS COMO AQUELE QUE SERVE" (Lc 22,27).
 
Não é outro o centro da Eucaristia, que esse ato de amor de Jesus doando-se todo para o Pai e o Homem, dimensão que deverá nortear a atividade apostólica, alimentada e "em comunhão" com o Cristo Eucarístico. Isso leva ao mesmo episódio segundo Mateus, em que Jesus diz:  "...o que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o vosso servo. ...o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Mt 20,27-28)
 
É o AMOR-DOAÇÃO de Jesus, que se deverá repetir na comunhão fraterna, "em resgate por muitos", essa a principal dimensão que se inaugura na Ceia Eucarística, na comunhão ensejada pela refeição sacrificial. Não se trata, porém, de um valor "pago" "em resgate", como se a salvação tivesse o "credor de um preço", mas de um ato de extremo amor, de um Deus que "nos amou primeiro" (1Jo 4,10), pelo que a comunidade deve fazer o mesmo, "servir":  "Antes da Festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim" (Jo 13,1). / "Dou-vos um mandamento novo: Que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos uns aos outros. Nisso conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros" (Jo 13,34-35). / "..., e fazei que todas as nações se tornem discípulos, ..." (Mt 28,19).
 
Qual seja, VIVER A CARIDADE (AMOR DE DEUS) EM FRATERNA UNIDADE COMUNITÁRIA, ALIMENTADOS PELA "COMUNHÃO" COM CRISTO, e assim tornando-se uma comunidade. Esta só se forma a partir da comunhão Eucarística (com Jesus), único meio para se entrar em comunhão "comunitária". Isto fica por demais claro com o episódio em que Jesus ensina:  "..., se estiveres para trazer a tua oferta ao altar e ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e depois virás apresentar a tua oferta" (Mt 5,23-24).
 
Jesus se refere aqui ao altar, local dos sacrifícios, norma que não teria sentido se tivessem sido abolidos por Ele. Não os aboliu, ao contrário, tornou-se a única vítima, A HÓSTIA SAGRADA, deixando clara a condição de amor para "estar em comunhão com o altar", ou melhor, agora, com o próprio Jesus, tal como disse São Paulo (1Cor 10,18-21). Ainda se torna mais claro se for considerada a continuidade do "Discurso Eucarístico" de São João, comparando-o com as Palavras de Cristo na Multiplicação dos Pães:  "Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue, verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Assim como o Pai, que vive, me enviou e eu vivo pelo Pai, também aquele que comer de mim viverá por mim" (Jo 6,54-57).
 
Desde o Lava-Pés (Jo 13) até o final do capítulo dezessete, João descreve os acontecimentos na Ceia Eucarística até a estada no Monte das Oliveiras (Jo 18), onde Jesus foi preso. Não se pode separar esses capítulos como se fossem compartimentos estanques, cada um com o seu tema. Formam uma unidade com a Ceia Eucarística. Confirma assim João a exatidão dos Sinóticos, quando colocam a Instituição da Eucaristia e a Paixão de Cristo num mesmo dia. Devem ser lidos sob a mesma perspectiva sacrificial e comunitária da Fração do Pão, e sem solução de continuidade, lembrados de que a divisão em capítulos nos Livros Sagrados vem mais como auxiliar aleatório de localização, e não como nos dos profanos, separados por assunto ou abordagem, muitas vezes distintos e definitivos. Observando-se isso, essa última perícope transcrita deverá ser conjugada à que se segue, do "Discurso Eucarístic o", para, comparando-as, se compreender melhor a dimensão da unidade advinda da manducação da Hóstia Sagrada:   "Permanecei em mim, como eu em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque sem mim nada podes fazer. (...) Assim como o Pai me amou também eu vos amei. Permanecei no meu amor. Se observais os meus mandamentos permanecereis no meu amor, como eu guardei os preceitos de meu Pai e permaneço em seu amor. (...) Este é o meu preceito: amai-vos uns aos outros como eu vos amei" (Jo 15,4-12).
 
Jesus coloca assim a Eucaristia como centro gravitacional da Unidade do Seu Corpo Místico, sacramento e fonte do amor, veículo e meio da permanência dos fiéis nEle e dEle nos fiéis, tornando-se uma unidade com o Pai:  "Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. (...) Não rogo somente por eles, mas pelos que, por meio de sua palavra crerão em mim: a fim de que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste" ... (Jo 17,18-26). / "Se alguém me ama, guardará minha palavra e meu Pai o amará, e a ele viremos e nele estabeleceremos morada" (Jo 14,23).
 
São Paulo confirma essa vinculação do Corpo Místico de Cristo à Eucaristia, quando diz, e alhures esclarece:  "Já que há um único Pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, visto que todos participamos desse único Pão" (1Cor 10,17). / "Cabeça da Igreja, que é o Seu Corpo: a PLENITUDE DAQUELE QUE PLENIFICA TUDO EM TODOS" (Ef 1,22).
 
Com uma visão assim mais abrangente é de se compreender melhor o Sacrifício Eucarístico e o da Cruz. Por isso dissemos no início que hoje não se tem a mesma noção cultural do sacrifício, tal como os antigos, bem como israelitas ou judeus. Pelo conhecimento e compreensão dos seus fundamentos, aceitaram e acataram facilmente a Celebração Eucarística, legando-nos da Tradição Apostólica, a Santa Missa

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